terça-feira, 30 de outubro de 2012

A história de uma catadora de sonhos

“Eu tenho orgulho de minha origem”, diz Rosicleide, que já trabalhou em lixão e vai se formar em Pedagogia


Por Heverthon Rocha*

Era uma tarde de sábado. O calendário marcava 16 de abril de 1977, quando, na Maternidade das Quintas, nascia Rosicleide Manço do Nascimento, filha de João Pereira do Nascimento e Maria das Graças Manço do Nascimento. Rose, como hoje é conhecida, foi a terceira filha de uma família de seis - quatro mulheres e dois homens.
Desde garotinha ela acompanhava os irmãos durante o trabalho de catação de resíduos recicláveis, em meio a urubus e porcos, no antigo lixão de Natal, no bairro de Cidade Nova. Os irmãos catavam e separavam, enquanto Rose ajudava tomando conta para que ninguém furtasse o que já havia sido juntado.
        De memória excelente, ela ainda lembra dos dias difíceis no que os catadores chamam de “forno do lixo”. Rose relata que “os caminhões chegavam e tinha aquela multidão de pessoas, cada um com seus ganchos, catando plástico, papel, vidro, alumínio e outras coisas. Cada um tinha seus canteiros, com barraquinhas de madeira e papelão, e eu ficava com meus irmãos fazendo a triagem dos materiais para vender”. 
         Durante muitos anos viveu sem oportunidades, sem garantias de um futuro melhor. Vendo-se em meio a todo o lixo domiciliar descartado e coletado na cidade do Natal e com a força e salários do trabalho do pai gari e da mãe costureira, se manteve estudando, sempre em escola pública, até concluir o segundo grau. Com o fim do lixão, em 2004, Rosicleide se viu em meio a uma dúvida que dizia respeito a seu futuro como cidadã. O que fazer a partir daquele momento? “Terminei o ensino médio e não tinha perspectiva nenhuma”, disse Rosicleide. “Meu trabalho era no lixão. Não fazia outra coisa”.
Com o fim do lixão de Cidade Nova, os catadores tiveram que ser inseridos em associações. A Prefeitura do Natal teve que realizar diversos cursos de formação para os catadores, daí veio a primeira oportunidade que Rosicleide aguardava. Sendo conhecedora nata da história e modo de vida dos catadores, foi trabalhar num projeto de alfabetização mantido pelo Instituto Paulo Freire/Mova-Brasil. “Fui convidada para alfabetizar os catadores. Fiquei preocupada no início, mas não perdi a oportunidade e aceitei. Enfrentei a timidez e meus medos e fui”, relatou, com um sorriso no rosto. Depois participou de projetos do BB Educar e da Prefeitura do Natal.
Para alfabetizar os catadores, a maioria adultos, Rosicleide utilizou como instrumento de ensino a vida dos próprios alunos. “Eu os ensinava a ler e a escrever de acordo com a realidade deles. De acordo com a realidade da coleta seletiva, do antigo lixão, da comunidade e da sociedade na qual estão inseridos. Sempre trabalhei com a pedagogia segundo Paulo Freire”, contou, com orgulho. “Na época nem sabia quem era Paulo Freire, mas já aplicava seus ensinamentos intuitivamente”.
Agora motivada, a catadora de sonhos resolveu investir na carreira de educadora e a perseguir um objetivo maior, o de ser pedagoga. Mas Rose sabia que as coisas não seriam fáceis. “Eu fiquei pensando: como vou fazer um curso superior se não tenho condições de comprar livros para estudar?”. A solução, ela encontrou na própria coleta seletiva. Rose iniciou uma incessante busca por materiais didáticos no meio de tantos resíduos que coletava diariamente. Aos poucos foi montando uma biblioteca particular com livros de língua portuguesa, matemática, história, geografia e tantos outros que possibilitaram a ela estudar para o vestibular.
Rosicleide relata que em certo momento pensou em desistir, mas teve o apoio do marido, José Paulírio, que também é catador, e de sua ex-professora Meiriane Barata. “Senti-me desmotivada, mas eles me deram muito incentivo para continuar minha luta. Sou grata aos dois por isso”, explicou, exibindo nos olhos humildade a gratidão. “Estudei e passei no vestibular. Hoje estou no sétimo período de Pedagogia e me formo no final do ano. Pretendo ir além. Não vou parar numa graduação”, comemorou.
Atuando como alfabetizadora dos catadores há mais de seis anos, Rosicleide pretende fazer especialização em meio ambiente, com ênfase na coleta seletiva, e ajudar a melhorar a vida dos demais catadores. “Quero dar a mesma oportunidade que tive aos meus companheiros de trabalho”.
Em fevereiro de 2012, Rosicleide assumiu um novo desafio, o de se tornar educadora catadora no projeto Cataforte, do Governo Federal, que tem como objetivo o fortalecimento do associativismo e cooperativismo dos catadores de materiais recicláveis, com 160 alunos matriculados. “Estar inserida neste processo é tudo para mim. Estou vivenciando coisas diferentes. Antes eu alfabetizava catadores, agora ensino aos catadores sobre economia solidária. São ensinamentos e aprendizados distintos”, comparou.
Acompanhando um desses momentos de aula de Rosicleide, percebi que existe uma relação de cumplicidade entre a educadora e os educandos. “Sinto-me realizada. Estou compartilhando com eles a minha história e também incentivando-os para que não parem de estudar. Para que procurem se desenvolver tanto como profissionais, quanto como cidadãos. Nesse processo construo com eles uma nova perspectiva de vida, como construi a minha”, diz, com os olhos marejados e escondidos atrás das lentes claras dos óculos.
Além de alfabetizar cerca de 300 catadores de materiais recicláveis, Rosicleide Manço afirma com orgulho e satisfação que foi ela quem despertou o desejo do pai, até então analfabeto, de aprender a ler. “Eu alfabetizei meu pai e minha mãe ficou motivada a frequentar o Ensino de Jovens e Adultos. Hoje ela lê e escreve poesias. Minha mãe é uma poetisa”.
Da história de vida de Rosicleide Manço do Nascimento tirei grandes ensinamentos. Principalmente, o de que nunca é tarde para buscar crescer na vida. Correr atrás do crescimento pessoal, sobretudo, dando importância ao bem estar dos outros. E sempre com orgulho do que fazemos e de quem somos. “Eu tenho orgulho de minha origem. Tenho orgulho de dizer que sou catadora de materiais recicláveis”, concluiu a catadora de sonhos.

* Heverthon Jeronimo da Rocha é graduado em Gestão Ambiental, especialista em Educação Ambiental e Direito Ambiental e graduando em Comunicação Social.